História de um
menino que há de nascer…

Será uma vez, daqui a muitos,
muitos anos, um menino que tinha tudo para ser feliz (segundo os cânones da
época que há de vir…): uma mãe biológica e afetiva, um pai de substituição que
só um olho clínico conseguiria distinguir de um pai verdadeiro, uma EV (Escola
Virtual) de última geração e um E-Mind potentíssimo.
À noite, o pai do menino,
paciente e dedicado como nenhum outro, procurava, na maior parte das vezes sem
sucesso, convencê-lo o pôr o capacete E-Mind. Explicava-lhe que era importante
ter um futuro garantido, que o E-Mind o iria ajudar a obedecer sempre ao CC
(Computador Central), permitir-lhe-ia pensar de acordo com os objetivos
estabelecidos e desencorajaria perguntas sem sentido. E, muito importante!, só
com uma mente assim treinada e comandada, poderia usufruir, quando fosse
grande, do TT (teletransporte), também controlado pelo CC.
E o menino resistia, amuava,
chorando até. E tudo porque, desde que apanhara, sem que tal devesse ter
acontecido, partes de uma conversa entre o pai e a mãe acerca de livros,
e-books e histórias que os pais contavam aos filhos em épocas longínquas, não
parava de fazer perguntas.
O que era um e-book e um livro; o que
era uma história; que era isso de os pais contarem histórias aos filhos. E
tinha chegado ao cúmulo de sugerir que lhe contassem, também a ele, uma
história, por lhe parecer ser uma coisa boa.
Os pais ficavam cada vez mais
preocupados com estes comportamentos desviantes da criança. E eram exemplares,
aqueles pais! O que os angustiava era saberem que aquele perfil do rebento não
augurava nada de bom. Se o CC suspeitasse, com a sua potente neuromemória, nem
que fosse em sonhos, do que se estava a passar, a ação seria imediata: criança
retirada aos pais, reformatada e colocada em regime de internato numa EV
especial. Mas não seria tudo, infelizmente. Havendo vestígios, por mínimos que
fossem, após a aplicação do PAC (Plano de Ação Corretiva), dos comportamentos
antirregulamentares, seria o próprio CC a dar o clique que enviaria aquele elo
problemático para a RSR (Reciclagem Sem Retorno).
Havia, apesar de tudo, uma
réstia de esperança. Circulava no MNP (Mercado Negro Planetário) um novo
produto que prometia pôr na linha a mais rebelde das crianças. O Don’t Worry
era um microchip, assumia-se como uma verdadeira alternativa ao E-Mind e
prometia maravilhas em letras fluorescentes subliminares: “Doma a mais
indomável da vontades!”
O produto estava incorporado nas
memórias-sabores que as crianças mais apreciavam: araçá, pitanga, medronho e
mirtilho. Era engolido, como se de uma guloseima se tratasse, e já
estava! Quanto a efeitos secundários, nada se sabia. Seria sempre um
desesperado “tiro no escuro”…
Naquela noite, tudo seria
diferente. X72y, o menino da nossa história, não foi obrigado a pôr o capacete
e pôde fazer perguntas e mais perguntas. E mesmo sem obter qualquer resposta,
parecia feliz naquele corpo franzino, de olhos brilhantes e pele translúcida.
Pulava, dava beijinhos à mãe, que era biológica mas também afetiva, fazia
miminhos ao pai, de substituição mas tal qual um verdadeiro. E ria, ria muito.
A mãe, com o coração afectivo
partido, chamou-o:
-- X72y, meu fofinho, vem à mamã
BA (Biológica e Afetiva)! Sabias que és o Y mais querido que há na Galáxia,
sabias? – E dava-lhe beijinhos doces, fazia-lhe cócegas e fazia brrr brrr com a
boca na barriguinha frágil.
Numa época passada há muito,
seria certamente a imagem de uma família feliz…
-- A mãezinha tem um e-doce! E
para quem é?
-- Hham, nham! Que bom! Que bom!
Araçá, pleeeease! – O inglês será neste futuro longínquo a única língua
oficial, aprendida desde a incubadora por todas as crianças, sob a supervisão
atenta do CC.
-- Acertaste, fofinho! – Dizia a
mãe de forma quase sincera, não fora o logro a que iria sujeitar o seu pequeno
e indefeso X72y.
A criança engoliu sofregamente o
microship com forma de araçá vermelho (muito mais apreciado do que o amarelo),
sentindo vividamente a memória da frescura ligeiramente ácida daquele fruto
extinto há muito.
Poucos minutos depois, X72y
entrou em letargia. E assim permaneceu, parado no espaço e no tempo, a
alimentar as esperanças ansiosas dos pais.
Aquela mãe biológica (e muito,
mas mesmo muito afetiva) e aquele pai de substituição (insubstituível) só
queriam que o seu menino fosse como os outros, que deixasse de os questionar,
que ficasse dócil e que tudo corresse bem no dia do juramento de fidelidade
perante o CC. Esperavam um renascimento, um verdadeiro milagre!
Numa noite fria, no último
dia do ciclo astral, lá estavam os progenitores, de mão dada (gesto censurado
na época), a olhar o seu campeão (como o pai lhe chamava), suspenso na sua
cadeirinha digital, com o ar frágil de sempre, desprotegido…
-- Mãezinha…
A mãe, mais afetiva do que
nunca, estremeceu de ternura ao ouvir aquele apelo gemido. E dentro de si, a
esperança ganhou espaço e preencheu-a. O seu homenzinho, como às vezes dizia,
superara a provação e a vida seguiria o rumo esperado. Seria, como as outras,
uma criança integrada, normal e com sucesso na vida. Aproximou-se da cadeirinha
com o coração aliviado e olhou de perto aqueles olhinhos queridos, quase
cedendo à tentação de os beijar. De repente, estremeceu. Pareceu-lhe
reconhecer, naquele olhar, um certo brilho inquiridor… “Não é possível!”,
pensava ela, desesperada, em alvoroço total.
-- Mãezinha… O que é o Natal?
António
Pereira
Espero que tenham gostado do meu primeiro conto. Emocionei-me ao escrevê-lo.